Caros amigos: hoje eu morri. E
enquanto estive morto desejei não ter nascido. Isso tudo porque conheci o
Haroldo.
Ontem a tarde (03/09), fui ao
oftalmologista, sozinho, dirigindo.
Após a dilatação dos olhos, fiquei
impossibilitado de dirigir, pois perdi a visão periférica por pelo menos duas
horas e precisei aguardar até que a visão fosse reestabelecida em condições
seguras que eu pudesse voltar para casa.
Fiquei sentado no banco da praça em
frente a igreja no largo do Rudge Ramos, (São Bernardo do Campo), e se
aproximou de mim, um rapaz alto, quase dois metros de altura, entre 25 e 30
anos, meio aloirado, magro, não malvestido, mas sujo. Muito sujo!
Já comecei a ficar desconfiado, com
esse cara se aproximando de mim – achando que fosse um desses usuários de
drogas que pedem dinheiro na rua. Quando ele se aproximou, me desarmou com seu
tom sereno e triste:
“Moço, você tem condições de me ajudar
a comer hoje? Eu fui expulso de casa no sábado, estou com fome e não tenho o
que comer...”
Juro que minha reação foi nenhuma! Fiz
cara de “como é?”... ninguém nunca tinha me parado na rua para pedir comida,
desse jeito... Eu sou do tipo sistemático, que nunca dou ajudas em dinheiro na
rua – primeiro que nunca ando com dinheiro, outra que nunca tenho, e defendo
que assistencialismo aplicado de forma incorreta, vira parasitismo.
Mas a verdade, é que este caso foi
mais complexo. Ele poderia ter falado qualquer coisa, mas disse: “fui expulso
de casa”.
Me vi obrigado, a fazê-lo contar um pouco
mais da história: Pasmem com a história do rapaz.
Vou colocar todo o trecho entre aspas,
pois a história dele está descrita com minhas palavras: “meu pai, descobriu no
sábado que eu sou ‘viado’, e depois de uma grande discussão com minha mãe, me
colocou porta a fora de casa. Eu fui para a casa de uma tia, mas também não me
quis lá, porque disse que eu poderia ‘mexer’ com os meus primos. Daí eu estou
aqui, eu ganhei aqueles cobertores ali, e eu estou dormindo na porta da igreja,
que é coberto e não chove”.
- Qual o teu nome, cara?- Perguntei.
“- Haroldo”.
Neste instante eu morri. E desejei não
estar ali para viver isso. Fiquei tão sem ação, que não sabia se pagava um
cachorro-quente para ele, ou se o levava a um restaurante para uma refeição
decente.
Ele não aparentava ser usuário de
drogas, não tinha o linguajar característico da periferia, não tinha traços
rebolativos, que o caracterizasse um homossexual, e mesmo que os tivesse, como
talvez alguns achassem que deveria, não justificava. Ele apenas não
compartilhava da opinião do pai, que queria que ele gostasse de meninas.
Eu abri o jogo que não tinha dinheiro,
mas poderia levá-lo ao supermercado em frente, para comprar algo para ele
comer. Foi a única coisa que me veio a cabeça. Ele topou, meio sem jeito,
porque sabia que não estava tão apresentável para entrar no supermercado.
No supermercado, pedi que ele pegasse
alguma coisa para um lanche. Ele pegou pão, e perguntou se podia pegar mortadela,
neste momento, me segurei para não me desmontar em lágrimas...
Pegamos pão, presunto, queijo,
panetone, (eu acho que todos gostam de panetone, tanto quanto eu), uns
biscoitos doces e salgados, comida pronta, dessas que vendem no supermercado
com frango, e arroz, suco, refrigerante suficientes para uns dois lanches, pelo
menos já garantia o jantar.
Durante estas compras não pude deixar
de perguntar um pouco mais sobre a sua “expulsão”, pois não conseguia me
conformar com o que tinha acontecido ao Haroldo. Também não condenei seus pais
em nenhum momento, pois embora tenham cometido uma atrocidade, era dos pais dele
que a gente estava falando. Eu não tinha o direito de falar mal de seus pais.
Alguns momentos, ele falava com
lágrimas nos olhos, que não tinha culpa de não gostar de meninas, e que ele até
entendia que o pai dele, tenha feito isso com ele, porque talvez ele fizesse o
mesmo se um filho seu dissesse que era “viado”. O que conotava que nem ele
mesmo se aceitava, o que é um risco muito grande, porque quando alguém não aceita
a sua condição, provavelmente não importa muito com o que lhe aconteça no
futuro.
Passamos pelo caixa, paguei o lanche,
e Haroldo me agradeceu com tanta felicidade, que voltei a viver. Voltei a viver
por ter conseguido trazer a alegria a este rapaz, com algo tão pouco, perto do
inferno que ele estava vivendo.
Pus-me a refletir depois, sobre a
atitude dos pais deste menino, jogar um filho na rua, pelo fato de ele gostar
do diferente.
Não lhe perguntei, o que motivou a
expulsão, não fazia sentido remoer a ferida. Apenas lhe disse que sua condição não
era motivo de vergonha, que o que ele é, deve refletir em seu caráter.
Despedi-me de Haroldo, vim para o
estacionamento e entrei no carro. Não consegui segurar as lágrimas por uns dez
minutos, imaginando o que seria dele, o que poderia lhe acontecer ali... jogado
na rua, sem um teto, sem um direcionamento, sem o apoio da família, dos pais – apenas
por pensar diferente, por ter gostos diferentes, talvez por não ter tido a oportunidade de
mostrar para a família a tempo, que a sua condição sexual não determinaria o que ele verdadeiramente era!