quarta-feira, 3 de setembro de 2014

MINHA MORTE, e MINHA “RESSURREIÇÃO”

Caros amigos: hoje eu morri. E enquanto estive morto desejei não ter nascido. Isso tudo porque conheci o Haroldo.
Ontem a tarde (03/09), fui ao oftalmologista, sozinho, dirigindo.
Após a dilatação dos olhos, fiquei impossibilitado de dirigir, pois perdi a visão periférica por pelo menos duas horas e precisei aguardar até que a visão fosse reestabelecida em condições seguras que eu pudesse voltar para casa.
Fiquei sentado no banco da praça em frente a igreja no largo do Rudge Ramos, (São Bernardo do Campo), e se aproximou de mim, um rapaz alto, quase dois metros de altura, entre 25 e 30 anos, meio aloirado, magro, não malvestido, mas sujo. Muito sujo!
Já comecei a ficar desconfiado, com esse cara se aproximando de mim – achando que fosse um desses usuários de drogas que pedem dinheiro na rua. Quando ele se aproximou, me desarmou com seu tom sereno e triste:
“Moço, você tem condições de me ajudar a comer hoje? Eu fui expulso de casa no sábado, estou com fome e não tenho o que comer...”
Juro que minha reação foi nenhuma! Fiz cara de “como é?”... ninguém nunca tinha me parado na rua para pedir comida, desse jeito... Eu sou do tipo sistemático, que nunca dou ajudas em dinheiro na rua – primeiro que nunca ando com dinheiro, outra que nunca tenho, e defendo que assistencialismo aplicado de forma incorreta, vira parasitismo.
Mas a verdade, é que este caso foi mais complexo. Ele poderia ter falado qualquer coisa, mas disse: “fui expulso de casa”.
Me vi obrigado, a fazê-lo contar um pouco mais da história: Pasmem com a história do rapaz.
Vou colocar todo o trecho entre aspas, pois a história dele está descrita com minhas palavras: “meu pai, descobriu no sábado que eu sou ‘viado’, e depois de uma grande discussão com minha mãe, me colocou porta a fora de casa. Eu fui para a casa de uma tia, mas também não me quis lá, porque disse que eu poderia ‘mexer’ com os meus primos. Daí eu estou aqui, eu ganhei aqueles cobertores ali, e eu estou dormindo na porta da igreja, que é coberto e não chove”.
- Qual o teu nome, cara?- Perguntei.
“- Haroldo”.
Neste instante eu morri. E desejei não estar ali para viver isso. Fiquei tão sem ação, que não sabia se pagava um cachorro-quente para ele, ou se o levava a um restaurante para uma refeição decente.
Ele não aparentava ser usuário de drogas, não tinha o linguajar característico da periferia, não tinha traços rebolativos, que o caracterizasse um homossexual, e mesmo que os tivesse, como talvez alguns achassem que deveria, não justificava. Ele apenas não compartilhava da opinião do pai, que queria que ele gostasse de meninas.
Eu abri o jogo que não tinha dinheiro, mas poderia levá-lo ao supermercado em frente, para comprar algo para ele comer. Foi a única coisa que me veio a cabeça. Ele topou, meio sem jeito, porque sabia que não estava tão apresentável para entrar no supermercado.
No supermercado, pedi que ele pegasse alguma coisa para um lanche. Ele pegou pão, e perguntou se podia pegar mortadela, neste momento, me segurei para não me desmontar em lágrimas...
Pegamos pão, presunto, queijo, panetone, (eu acho que todos gostam de panetone, tanto quanto eu), uns biscoitos doces e salgados, comida pronta, dessas que vendem no supermercado com frango, e arroz, suco, refrigerante suficientes para uns dois lanches, pelo menos já garantia o jantar.
Durante estas compras não pude deixar de perguntar um pouco mais sobre a sua “expulsão”, pois não conseguia me conformar com o que tinha acontecido ao Haroldo. Também não condenei seus pais em nenhum momento, pois embora tenham cometido uma atrocidade, era dos pais dele que a gente estava falando. Eu não tinha o direito de falar mal de seus pais.
Alguns momentos, ele falava com lágrimas nos olhos, que não tinha culpa de não gostar de meninas, e que ele até entendia que o pai dele, tenha feito isso com ele, porque talvez ele fizesse o mesmo se um filho seu dissesse que era “viado”. O que conotava que nem ele mesmo se aceitava, o que é um risco muito grande, porque quando alguém não aceita a sua condição, provavelmente não importa muito com o que lhe aconteça no futuro.
Passamos pelo caixa, paguei o lanche, e Haroldo me agradeceu com tanta felicidade, que voltei a viver. Voltei a viver por ter conseguido trazer a alegria a este rapaz, com algo tão pouco, perto do inferno que ele estava vivendo.
Pus-me a refletir depois, sobre a atitude dos pais deste menino, jogar um filho na rua, pelo fato de ele gostar do diferente.
Não lhe perguntei, o que motivou a expulsão, não fazia sentido remoer a ferida. Apenas lhe disse que sua condição não era motivo de vergonha, que o que ele é, deve refletir em seu caráter.

Despedi-me de Haroldo, vim para o estacionamento e entrei no carro. Não consegui segurar as lágrimas por uns dez minutos, imaginando o que seria dele, o que poderia lhe acontecer ali... jogado na rua, sem um teto, sem um direcionamento, sem o apoio da família, dos pais – apenas por pensar diferente, por ter gostos diferentes,  talvez por não ter tido a oportunidade de mostrar para a família a tempo, que a sua condição sexual não determinaria o que ele verdadeiramente era!

O Brasão dos Sátiros